terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O Estruturalismo Processual de Stuart Kauffman

Proposta: este artigo é um resumo do texto "Kauffman e a Teoria da Evolução 'no limite do caos'", do cientista brasileiro Alexandre Torres Fonseca, do Instituto das Ciências Humanas, Comunicação e Artes - ICHCA - da Universidade Federal de Alagoas. Procurei apresentar as ideias de modo direto, prático, usando o mínimo de termos filosóficos que podem confundir os leitores de mentalidade mais mecanicista.

O Estruturalismo Processual é um projeto de pesquisa (process structuralism, ou developmentalism), “uma ‘linha de pensamento’, que defende a ideia de que a seleção natural é apenas uma, e talvez nem mesmo a mais fundamental, fonte de ordem biológica dos seres vivos”. O aspecto "estruturalista" deste programa refere-se a sua tentativa de descobrir estruturas gerais (padrões, formas) regidas por leis do desenvolvimento. Processual porque se refere ao processo completo de desenvolvimento em vez de causas particulares. Segundo Stephen Jay Gould, "as características principais da arquitetura orgânica não são nem especificamente adaptações construídas pela seleção nem são as contingências históricas, mas representações de padrões naturais inerentes" (Gould, apud Brockman, 1998, p. 94).

Kauffman propõe que tanto a seleção natural quanto a auto-organização da matéria são as responsáveis pela geração da ordem biológica, atuando em conjunto. Para ele (1993; 1995), o papel da auto-organização estaria ligado à evolução das espécies, neste caso atuando junto com a seleção natural, complementando-a ou restringindo-a. Então considera que a teoria da evolução é apenas parte de outra teoria maior que a englobaria.

Ele é um biólogo teórico que faz parte do Science Board do Santa Fe Institute, criado em 1984 por um dos membros do Projeto Manhattan, George A. Cowan. É um instituto próprio para estudar as ciências da complexidade, revivendo o movimento cibernético dos anos 50 e 60.

Considerando que a teoria da evolução é apenas parte de outra teoria maior que a englobaria, Kauffman diz: [...] explorar as origens da ordem que possam estar disponíveis à evolução [...] Portanto, para combinar os temas da auto-organização e da seleção natural, devemos expandir a teoria evolutiva para que ela tenha uma base mais ampla e depois erguer um novo edifício. (Kauffman, 1993, p. XIV).

Ele, em seus estudos, utiliza as redes booleanas, também conhecidas como redes binárias, para investigar a dinâmica dos sistemas complexos. Elas são sistemas termodinâmicos que se comportam conforme três regimes: um ordenado, um caótico e um complexo. E é no regime complexo, o qual se encontra "no limite do caos" que vamos encontrar os sistemas vivos (Kauffman, 1993, capítulo 4, Order for free). Daí, simulando a evolução, ele vê transições de fase entre atratores próximos e ordem espontânea (free order) ou emergente surgindo da auto-organização. Já os neodarwinistas vêem adaptação e mudança gradual (Kauffman, 1993; Richardson, 2001, p. 656; Auyang, 1999, pp. 195-202).

Morfologistas racionais, incluindo D'Arcy Wenthworth Thompson, influem nos trabalhos de Kauffman. O livro de Thompson "On growth and form", de 1917, mas aumentado em 1942, é considerado por Kauffman um dos melhores já escritos para quem procura encontrar ordem existente nos seres vivos. Segundo Thompson, a "harmonia do mundo manifesta-se em forma e número, e, o cerne e a alma e toda a poesia da filosofia natural estão incorporados no conceito de beleza matemática" (Thompson, 1942, p. 1096). Mas agora é nos sistemas complexos que se procuram as origens da ordem na evolução, como Kauffman diz: [...] as fontes da ordem na biosfera vão agora incluir tanto a seleção quanto a auto-organização. [...] temos que englobar os papéis tanto da auto-organização quanto da seleção darwiniana na evolução. (Kauffman, 1995, pp. 25-26).

Kauffman, utilizando modelos em computadores com a teoria do caos, mostrou que sistemas biológicos auto-catalíticos - aqueles necessários ao surgimento do metabolismo - e sistemas regulatórios genômicos, exibem propriedades auto-organizadoras correspondentes a algumas das propriedades também auto-organizadoras encontradas nos sistemas caóticos. Então, argumenta ele, que os sistemas vivos podem ser tratados como sistemas no limite do caos, que a vida por muitas frentes evolve em direção a um regime equilibrado entre a ordem e o caos.

Podemos fazer uma comparação: a água existe no estado sólido, líquido e gasoso, ou seja, em torno de transições de fase. Sistemas adaptativos complexos como as redes genômicas não poderiam existir em um estado congelado ordenado por ser rígido demais; também não em um regime gasoso por ser caótico e não ordenado, mas, sim, no limite do caos para poder existir uma coordenação de atividades complexas.

Sistemas auto-organizados são mais capazes de se adaptarem do que os não auto-organizados, e, assim, ajudariam a evolução, mas, para Kauffman, haveria uma "restrição ao desenvolvimento", porque a própria seleção natural teria algumas limitações, baseadas então nas propriedades da auto-organização da vida que não são restrições históricas ou físico-químicas.

O limite do caos também aparece na co-evolução de seres vivos que competem entre si onde se escala o que se chama de paisagem de aptidão em direção a picos de aptidão. Dobzhansky e Sewall Wright disseram que a seleção natural é mais eficaz quando existem múltiplos picos de aptidão em uma paisagem.

Em termos de morfologia, repetição de padrões, Kauffman diz que a razão de estarmos aqui não é produto do acaso, mas produto de uma lei natural, com a humanidade encontrando seu lugar no universo da mesma maneira que um atrator encontra seu lugar em um espaço de possibilidades. Diz ele: "A existência de uma ordem espontânea é um desafio incrível às nossas ideias estabelecidas em biologia desde Darwin. A maior parte dos biólogos acreditou durante mais de um século que a seleção foi a única fonte de ordem na biologia, que apenas a seleção é o 'remendão' que cria as formas. Mas, se as formas dentre as quais a seleção faz sua escolha foram geradas por leis da complexidade, então, isto significa que a seleção dispôs sempre de uma serva. A seleção natural não seria, afinal de contas, a única fonte da ordem e os organismos não seriam apenas engenhocas feitas de qualquer jeito, e sim expressões de leis naturais mais profundas. Se tudo isto é verdade, que revisão da visão de mundo darwinista se estenderá diante de nós! Não nós, os imprevistos, e sim nós, os esperados." (Kauffman, 1995, p. 8).

Para Kauffman, se então, a vida em abundância devesse fatalmente surgir, não enquanto um acidente incalculavelmente improvável, mas sim como uma efetivação esperada da ordem natural, então estaríamos verdadeiramente em casa no universo (at home in the universe). Ele ainda diz que a teoria da complexidade poderia explicar a origem das formas corporais, das relações ecológicas, da psicologia, dos padrões culturais e da economia. Encontrar leis gerais para isto tudo é considerado para ele uma busca de uma "teoria de emergência" (Kauffman, 1995).

Um dos grandes críticos de Kauffman, o filósofo Michael Ruse, argumenta que um bom número de pessoas buscam explicações mais para o lado místico, falando "em questões como organização, holística e coisas assim", trazendo para a discussão coisas religiosas ou metafísicas (Araújo & Oliveira, 1999, pp. 13-14).  As ciências da complexidade, diz Kauffman: "poderiam nos ajudar a encontrar novamente nosso lugar no universo" (ibid., p. 4). Assim poderíamos "recuperar nosso senso de valor, nosso sentido de sagrado" (ibid., p. 5). A crítica de Ruse possui muito fundamento, mas diversos teóricos que discutem a biologia do desenvolvimento (evo-devo) e que têm publicado trabalhos recentemente citam os trabalhos de Kauffman.

Até o momento o estruturalismo processual ainda não provou empiricamente a sua tese. Ele é baseado em programas de computador que ainda não produziram resultados que impressionem e resistam à passagem do tempo. Andreas Wagner, em "Robustness and evolvability in living systems", (2005), defende algumas ideias de Kauffman e contribui significativamente para o esforço de se repensar a evolução. Wagner aprofunda a proposta de Kauffman de que "muitas das características dos organismos e sua evolução [seriam] profundamente robustas e insensíveis a detalhes" (Kauffman, 1995, p. 23). No final do livro Wagner lança sete questões abertas para a consideração dos biólogos sistêmicos e dos neodarwinistas, reconhecendo que ambos ainda não responderam a uma série de questões, que são atualmente muito mais empíricas do que teóricas.

Os defensores da Síntese Moderna tendem a relacionar o estruturalismo com os Naturphilosophen, com os morfologistas racionais e com os anatomistas transcendentais. Os naturphilosophen eram biólogos pré-darwinianos como Goethe, Oken, Owen e Geoffroy Saint-Hilaire e procuravam leis matemáticas capazes de explicar por que a natureza parecia recorrer sempre aos mesmos motivos. Para eles, as espécies eram consideradas divisões naturais, o resultado de leis ocultas da natureza.

A morfologia no período pré-evolucionista combinou a observação de certos tipos de estrutura (unidade de plano) com o conceito platônico de eidos, postulando que os organismos representariam um número limitado de arquétipos. Os morfologistas buscavam a essência verdadeira, o tipo ideal, ou como os alemães a chamavam, a Urform, latente na grande variedade observável (Mayr, 2005, pp. 42, 189; Mayr, 1982, p. 458). Esses morfologistas idealísticos não conseguiam explicar a unidade de plano e o porquê das estruturas guardarem rigorosamente o seu modelo de conexões, independentemente do quanto fossem modificadas por necessidades funcionais. Em 1859, com a teoria da evolução, Darwin substituiu o arquétipo da morfologia idealística pelo ancestral comum e redefiniu, em função disto, a homologia, conferindo um novo sentido à pesquisa morfológica. Para ele, "nada poderia ser mais inútil do que tentar explicar esta semelhança de padrão nos membros da mesma classe com base na utilização ou na doutrina das causas finais" (Darwin, 2002, p. 329). Para ele, Wilkins, Maynard Smith, Monod e Mayr consideram o darwinismo como a única alternativa ao evolucionismo.

Para o debate evolucionismo/criacionismo/estruturalismo existe, porém, o trabalho de Ron Amundson baseado no que ele chama de esquema Russel/Ospovat, baseado na leitura de Edward S. Russel (Form and function, 1916) e de Dov Ospovat (The development of Darwin's theory, 1981; "Perfect adaptation and teleological explanation", 1978). Diz Amundson: "O drama da biologia do século XIX adquire novos aspectos a partir do esquema Russel/Ospovat. Em especial, a relevância do estudo da anatomia e da morfologia pode ser vista sob uma nova luz. [...] A alternativa R/O fornece uma perspectiva valiosa não apenas para o século XIX, mas também para a biologia pós-Síntese" (Amundson, 1998, p. 154).

Darwin escolheu como antagonista o criacionismo, mas não a morfologia racional e havia naquela época uma divergência entre os biólogos britânicos, que consideravam a adaptação orgânica como sendo um fato facilmente observável no mundo natural, preferindo as explicações funcionais, e os biólogos continentais, que pretendiam ter descoberto tipos "superiores" e eram especulativos, preferindo as explicações estruturais. "Os fatos funcionais pareciam concretos e empíricos para os britânicos e, por comparação, as teorias estruturalistas continentais (postulando unidades hipoteticamente-inferidas) pareciam transcendentais" (Amundson, 1998, pp. 170-171).

Com David Hull, em "Darwin and the nature of science" (1989), ele rompe com a tradição de se classificar o transcendentalismo como um subtipo da Teologia Natural. A biologia transcendentalista começa a ser distinguida do criacionismo da Teologia Natural. Os transcendentalistas concordavam que "[...] existia um 'sistema natural', que unificava formas distintas, e que os padrões estruturais, que podiam ser descobertos em embriologia e morfologia comparativa, davam indícios de sua natureza. Tipos e subtipos eram características intrínsecas deste sistema, e não meramente conveniências de classificação" (Amundson, 1998, p. 172).

Segundo Amundson, Dov Ospovat oferece uma representação melhor do debate na biologia do século XIX. A classificação proposta por Ospovat contrasta os teleologistas com os morfologistas. "Os teleologistas consideravam a adaptação e o ajuste dos organismos ao seu meio ambiente como o fato singular mais profundo da biologia. Os morfologistas rejeitavam a centralidade da adaptação e consideravam as propriedades em comum das estruturas como as mais profundas indicações da realidade biológica" (Amundson, 1998, pp. 154-155).

Russel, já em 1916, no livro Form and function, descreveu a história da biologia como um longo debate entre estruturalistas e funcionalistas. Amundson afirma que a perspectiva do esquema Evolução/Criação é usada por diversos filósofos, cientistas e historiadores principalmente entre 1959 e 1980. Já a interpretação que usa o esquema Russel/Ospovat recebe o apoio de um grupo mais atual de historiadores da ciência.

Os biólogos rotulados de "morfologistas idealísticos" são morfologistas, no esquema R/O. Eles pertenciam à categoria da anatomia transcendental e defendiam a primazia da estrutura ou da forma, da unidade de tipo sobre a função. Eles não eram aceitos pelos teólogos naturais britânicos que não levavam a sério a morfologia. "Os anatomistas transcendentais pareciam ver a natureza como capaz de auto-organização, mais do que o produto planejado de um Designer supernatural" (Amundson, 1998, pp. 159-160). O transcendentalismo não era nem evolucionário e nem criacionista (Amundson, 1998, p. 165).

Ao defender a imagem do transcendentalismo do século XIX como sendo relacionada com o "argumento do projeto", a perspectiva funcionalista do neodarwinismo subestimou as influências estruturalistas no pensamento de Darwin e superestimou a oposição de Darwin aos autores estruturalistas. O neodarwinismo apresentou ainda o estruturalismo como a própria antítese do pensamento científico evolucionário (Amundson, 1998, pp. 174-175).

Nos últimos quinze anos, os biólogos desenvolvimentistas passaram a argumentar a favor da inclusão das abordagens estrutural e embriológica na teoria evolucionária, sendo que alguns deles até defendem uma Segunda Síntese, que desta vez incluiria a embriologia: "Muitos estruturalistas modernos reconhecem sua ancestralidade intelectual associada aos transcendentalistas do século XIX”. Assim como no século XIX, alguns estruturalistas modernos, como Brian Goodwin e Stuart Kauffman, enfatizam padrões abstratos. Outros dão ênfase aos mecanismos ou à genética do desenvolvimento embriológico, como Wake e Gilbert. (Amundson, 1998, pp. 173-174).

Penso que certos debates evolucionários atuais, como por exemplo, o papel da seleção natural e a biologia do desenvolvimento (evo-devo), e também o trabalho de Kauffman (1993, 1995), se ajustariam coerentemente se vistos pela perspectiva do esquema R/O. Isto porque este esquema permite uma abordagem inclusiva, ao deixar claro dois aspectos: primeiro, o claro contraste entre teleologistas e morfologistas; segundo, o longo debate na história da biologia entre os defensores da centralidade biológica da forma (estruturalistas) e aqueles defensores centralidade da função (funcionalistas). O esquema R/O nos permite ver que, apesar de Kauffman apresentar ferramentas explanatórias diferentes da biologia evolutiva neodarwinista, isso não implica que uma das duas esteja errada. Pelo contrário, as duas poderiam estar corretas. Como bem ressalta Robert Richardson (2001), as obras "The origins of order" (Kauffman) e "The origin of species" (Darwin) não estão em competição.

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