Proposta: este artigo é um resumo do texto
"Kauffman e a Teoria da Evolução 'no limite do caos'", do cientista
brasileiro Alexandre Torres Fonseca, do Instituto das Ciências Humanas,
Comunicação e Artes - ICHCA - da Universidade Federal de Alagoas. Procurei
apresentar as ideias de modo direto, prático, usando o mínimo de termos
filosóficos que podem confundir os leitores de mentalidade mais mecanicista.
O Estruturalismo Processual é um projeto
de pesquisa (process structuralism,
ou developmentalism), “uma ‘linha de
pensamento’, que defende a ideia de que a seleção natural é apenas uma, e
talvez nem mesmo a mais fundamental, fonte de ordem biológica dos seres vivos”.
O aspecto "estruturalista" deste programa refere-se a sua tentativa
de descobrir estruturas gerais (padrões, formas) regidas por leis do
desenvolvimento. Processual porque se refere ao processo completo de
desenvolvimento em vez de causas particulares. Segundo Stephen Jay Gould,
"as características principais da arquitetura orgânica não são nem
especificamente adaptações construídas pela seleção nem são as contingências
históricas, mas representações de padrões naturais inerentes" (Gould, apud
Brockman, 1998, p. 94).
Kauffman propõe que tanto a seleção
natural quanto a auto-organização da matéria são as responsáveis pela geração
da ordem biológica, atuando em conjunto. Para ele (1993; 1995), o papel da
auto-organização estaria ligado à evolução das espécies, neste caso atuando
junto com a seleção natural, complementando-a ou restringindo-a. Então
considera que a teoria da evolução é apenas parte de outra teoria maior que a
englobaria.
Ele é um biólogo teórico que faz parte do Science Board do Santa Fe Institute, criado em 1984 por um dos membros do Projeto
Manhattan, George A. Cowan. É um instituto próprio para estudar as ciências da
complexidade, revivendo o movimento cibernético dos anos 50 e 60.
Considerando que a teoria da evolução é
apenas parte de outra teoria maior que a englobaria, Kauffman diz: [...]
explorar as origens da ordem que possam estar disponíveis à evolução [...]
Portanto, para combinar os temas da auto-organização e da seleção natural,
devemos expandir a teoria evolutiva para que ela tenha uma base mais ampla e
depois erguer um novo edifício. (Kauffman, 1993, p. XIV).
Ele, em seus estudos, utiliza as redes
booleanas, também conhecidas como redes binárias, para investigar a dinâmica
dos sistemas complexos. Elas são sistemas termodinâmicos que se comportam
conforme três regimes: um ordenado, um caótico e um complexo. E é no regime
complexo, o qual se encontra "no limite do caos" que vamos encontrar
os sistemas vivos (Kauffman, 1993, capítulo 4, Order for free). Daí, simulando
a evolução, ele vê transições de fase entre atratores próximos e ordem
espontânea (free order) ou emergente
surgindo da auto-organização. Já os neodarwinistas vêem adaptação e mudança
gradual (Kauffman, 1993; Richardson, 2001, p. 656; Auyang, 1999, pp. 195-202).
Morfologistas racionais, incluindo D'Arcy
Wenthworth Thompson, influem nos trabalhos de Kauffman. O livro de Thompson
"On growth and form", de 1917, mas aumentado em 1942, é considerado
por Kauffman um dos melhores já escritos para quem procura encontrar ordem
existente nos seres vivos. Segundo Thompson, a "harmonia do mundo
manifesta-se em forma e número, e, o cerne e a alma e toda a poesia da
filosofia natural estão incorporados no conceito de beleza matemática"
(Thompson, 1942, p. 1096). Mas agora é nos sistemas complexos que se procuram
as origens da ordem na evolução, como Kauffman diz: [...] as fontes da ordem na
biosfera vão agora incluir tanto a seleção quanto a auto-organização. [...]
temos que englobar os papéis tanto da auto-organização quanto da seleção
darwiniana na evolução. (Kauffman, 1995, pp. 25-26).
Kauffman, utilizando modelos em
computadores com a teoria do caos, mostrou que sistemas biológicos
auto-catalíticos - aqueles necessários ao surgimento do metabolismo - e
sistemas regulatórios genômicos, exibem propriedades auto-organizadoras
correspondentes a algumas das propriedades também auto-organizadoras
encontradas nos sistemas caóticos. Então, argumenta ele, que os sistemas vivos
podem ser tratados como sistemas no limite do caos, que a vida por muitas
frentes evolve em direção a um regime equilibrado entre a ordem e o caos.
Podemos fazer uma comparação: a água
existe no estado sólido, líquido e gasoso, ou seja, em torno de transições de
fase. Sistemas adaptativos complexos como as redes genômicas não poderiam
existir em um estado congelado ordenado por ser rígido demais; também não em um
regime gasoso por ser caótico e não ordenado, mas, sim, no limite do caos para
poder existir uma coordenação de atividades complexas.
Sistemas auto-organizados são mais capazes
de se adaptarem do que os não auto-organizados, e, assim, ajudariam a evolução,
mas, para Kauffman, haveria uma "restrição ao desenvolvimento",
porque a própria seleção natural teria algumas limitações, baseadas então nas
propriedades da auto-organização da vida que não são restrições históricas ou
físico-químicas.
O limite do caos também aparece na
co-evolução de seres vivos que competem entre si onde se escala o que se chama
de paisagem de aptidão em direção a picos de aptidão. Dobzhansky e Sewall
Wright disseram que a seleção natural é mais eficaz quando existem múltiplos
picos de aptidão em uma paisagem.
Em termos de morfologia, repetição de
padrões, Kauffman diz que a razão de estarmos aqui não é produto do acaso, mas
produto de uma lei natural, com a humanidade encontrando seu lugar no universo
da mesma maneira que um atrator encontra seu lugar em um espaço de
possibilidades. Diz ele: "A existência de uma ordem espontânea é um
desafio incrível às nossas ideias estabelecidas em biologia desde Darwin. A
maior parte dos biólogos acreditou durante mais de um século que a seleção foi
a única fonte de ordem na biologia, que apenas a seleção é o 'remendão' que
cria as formas. Mas, se as formas dentre as quais a seleção faz sua escolha
foram geradas por leis da complexidade, então, isto significa que a seleção
dispôs sempre de uma serva. A seleção natural não seria, afinal de contas, a
única fonte da ordem e os organismos não seriam apenas engenhocas feitas de
qualquer jeito, e sim expressões de leis naturais mais profundas. Se tudo isto
é verdade, que revisão da visão de mundo darwinista se estenderá diante de nós!
Não nós, os imprevistos, e sim nós, os esperados." (Kauffman, 1995, p. 8).
Para Kauffman, se então, a vida em
abundância devesse fatalmente surgir, não enquanto um acidente
incalculavelmente improvável, mas sim como uma efetivação esperada da ordem
natural, então estaríamos verdadeiramente em casa no universo (at home in the universe). Ele ainda diz
que a teoria da complexidade poderia explicar a origem das formas corporais,
das relações ecológicas, da psicologia, dos padrões culturais e da economia.
Encontrar leis gerais para isto tudo é considerado para ele uma busca de uma
"teoria de emergência" (Kauffman, 1995).
Um dos grandes críticos de Kauffman, o
filósofo Michael Ruse, argumenta que um bom número de pessoas buscam
explicações mais para o lado místico, falando "em questões como
organização, holística e coisas assim", trazendo para a discussão coisas
religiosas ou metafísicas (Araújo & Oliveira, 1999, pp. 13-14). As
ciências da complexidade, diz Kauffman: "poderiam nos ajudar a
encontrar novamente nosso lugar no universo" (ibid., p. 4). Assim
poderíamos "recuperar nosso senso de valor, nosso sentido de sagrado"
(ibid., p. 5). A crítica de Ruse possui muito fundamento, mas diversos teóricos
que discutem a biologia do desenvolvimento (evo-devo) e que têm publicado
trabalhos recentemente citam os trabalhos de Kauffman.
Até o momento o estruturalismo processual
ainda não provou empiricamente a sua tese. Ele é baseado em programas de
computador que ainda não produziram resultados que impressionem e resistam à
passagem do tempo. Andreas Wagner, em "Robustness and evolvability in
living systems", (2005), defende algumas ideias de Kauffman e contribui
significativamente para o esforço de se repensar a evolução. Wagner aprofunda a
proposta de Kauffman de que "muitas das características dos organismos e
sua evolução [seriam] profundamente robustas e insensíveis a detalhes"
(Kauffman, 1995, p. 23). No final do livro Wagner lança sete questões abertas
para a consideração dos biólogos sistêmicos e dos neodarwinistas, reconhecendo
que ambos ainda não responderam a uma série de questões, que são atualmente
muito mais empíricas do que teóricas.
Os defensores da Síntese Moderna tendem a
relacionar o estruturalismo com os Naturphilosophen, com os morfologistas
racionais e com os anatomistas transcendentais. Os naturphilosophen eram
biólogos pré-darwinianos como Goethe, Oken, Owen e Geoffroy Saint-Hilaire e
procuravam leis matemáticas capazes de explicar por que a natureza parecia
recorrer sempre aos mesmos motivos. Para eles, as espécies eram consideradas
divisões naturais, o resultado de leis ocultas da natureza.
A morfologia no período pré-evolucionista
combinou a observação de certos tipos de estrutura (unidade de plano) com o
conceito platônico de eidos, postulando que os organismos representariam um
número limitado de arquétipos. Os morfologistas buscavam a essência verdadeira,
o tipo ideal, ou como os alemães a chamavam, a Urform, latente na grande
variedade observável (Mayr, 2005, pp. 42, 189; Mayr, 1982, p. 458). Esses
morfologistas idealísticos não conseguiam explicar a unidade de plano e o
porquê das estruturas guardarem rigorosamente o seu modelo de conexões,
independentemente do quanto fossem modificadas por necessidades funcionais. Em
1859, com a teoria da evolução, Darwin substituiu o arquétipo da morfologia
idealística pelo ancestral comum e redefiniu, em função disto, a homologia, conferindo
um novo sentido à pesquisa morfológica. Para ele, "nada poderia ser mais
inútil do que tentar explicar esta semelhança de padrão nos membros da mesma
classe com base na utilização ou na doutrina das causas finais" (Darwin,
2002, p. 329). Para ele, Wilkins, Maynard Smith, Monod e Mayr consideram o
darwinismo como a única alternativa ao evolucionismo.
Para o debate
evolucionismo/criacionismo/estruturalismo existe, porém, o trabalho de Ron
Amundson baseado no que ele chama de esquema Russel/Ospovat, baseado na leitura
de Edward S. Russel (Form and function,
1916) e de Dov Ospovat (The development
of Darwin's theory, 1981; "Perfect adaptation and teleological
explanation", 1978). Diz Amundson: "O drama da biologia do século XIX
adquire novos aspectos a partir do esquema Russel/Ospovat. Em especial, a
relevância do estudo da anatomia e da morfologia pode ser vista sob uma nova
luz. [...] A alternativa R/O fornece uma perspectiva valiosa não apenas para o
século XIX, mas também para a biologia pós-Síntese" (Amundson, 1998, p.
154).
Darwin escolheu como antagonista o
criacionismo, mas não a morfologia racional e havia naquela época uma
divergência entre os biólogos britânicos, que consideravam a adaptação orgânica
como sendo um fato facilmente observável no mundo natural, preferindo as
explicações funcionais, e os biólogos continentais, que pretendiam ter
descoberto tipos "superiores" e eram especulativos, preferindo as
explicações estruturais. "Os fatos funcionais pareciam concretos e empíricos
para os britânicos e, por comparação, as teorias estruturalistas continentais
(postulando unidades hipoteticamente-inferidas) pareciam transcendentais"
(Amundson, 1998, pp. 170-171).
Com David Hull, em "Darwin and the
nature of science" (1989), ele rompe com a tradição de se classificar o
transcendentalismo como um subtipo da Teologia Natural. A biologia
transcendentalista começa a ser distinguida do criacionismo da Teologia
Natural. Os transcendentalistas concordavam que "[...] existia um 'sistema
natural', que unificava formas distintas, e que os padrões estruturais, que
podiam ser descobertos em embriologia e morfologia comparativa, davam indícios
de sua natureza. Tipos e subtipos eram características intrínsecas deste
sistema, e não meramente conveniências de classificação" (Amundson, 1998,
p. 172).
Segundo Amundson, Dov Ospovat oferece uma
representação melhor do debate na biologia do século XIX. A classificação
proposta por Ospovat contrasta os teleologistas com os morfologistas. "Os
teleologistas consideravam a adaptação e o ajuste dos organismos ao seu meio
ambiente como o fato singular mais profundo da biologia. Os morfologistas
rejeitavam a centralidade da adaptação e consideravam as propriedades em comum
das estruturas como as mais profundas indicações da realidade biológica"
(Amundson, 1998, pp. 154-155).
Russel, já em 1916, no livro Form and
function, descreveu a história da biologia como um longo debate entre
estruturalistas e funcionalistas. Amundson afirma que a perspectiva do esquema
Evolução/Criação é usada por diversos filósofos, cientistas e historiadores
principalmente entre 1959 e 1980. Já a interpretação que usa o esquema
Russel/Ospovat recebe o apoio de um grupo mais atual de historiadores da
ciência.
Os biólogos rotulados de
"morfologistas idealísticos" são morfologistas, no esquema R/O. Eles
pertenciam à categoria da anatomia transcendental e defendiam a primazia da
estrutura ou da forma, da unidade de tipo sobre a função. Eles não eram aceitos
pelos teólogos naturais britânicos que não levavam a sério a morfologia.
"Os anatomistas transcendentais pareciam ver a natureza como capaz de
auto-organização, mais do que o produto planejado de um Designer
supernatural" (Amundson, 1998, pp. 159-160). O transcendentalismo não era
nem evolucionário e nem criacionista (Amundson, 1998, p. 165).
Ao defender a imagem do transcendentalismo
do século XIX como sendo relacionada com o "argumento do projeto", a
perspectiva funcionalista do neodarwinismo subestimou as influências
estruturalistas no pensamento de Darwin e superestimou a oposição de Darwin aos
autores estruturalistas. O neodarwinismo apresentou ainda o estruturalismo como
a própria antítese do pensamento científico evolucionário (Amundson, 1998, pp.
174-175).
Nos últimos quinze anos, os biólogos
desenvolvimentistas passaram a argumentar a favor da inclusão das abordagens
estrutural e embriológica na teoria evolucionária, sendo que alguns deles até
defendem uma Segunda Síntese, que desta vez incluiria a embriologia:
"Muitos estruturalistas modernos reconhecem sua ancestralidade intelectual
associada aos transcendentalistas do século XIX”. Assim como no século XIX,
alguns estruturalistas modernos, como Brian Goodwin e Stuart Kauffman,
enfatizam padrões abstratos. Outros dão ênfase aos mecanismos ou à genética do
desenvolvimento embriológico, como Wake e Gilbert. (Amundson, 1998, pp.
173-174).
Penso que certos debates evolucionários
atuais, como por exemplo, o papel da seleção natural e a biologia do
desenvolvimento (evo-devo), e também o trabalho de Kauffman (1993, 1995), se
ajustariam coerentemente se vistos pela perspectiva do esquema R/O. Isto porque
este esquema permite uma abordagem inclusiva, ao deixar claro dois aspectos:
primeiro, o claro contraste entre teleologistas e morfologistas; segundo, o
longo debate na história da biologia entre os defensores da centralidade
biológica da forma (estruturalistas) e aqueles defensores centralidade da
função (funcionalistas). O esquema R/O nos permite ver que, apesar de Kauffman
apresentar ferramentas explanatórias diferentes da biologia evolutiva
neodarwinista, isso não implica que uma das duas esteja errada. Pelo contrário,
as duas poderiam estar corretas. Como bem ressalta Robert Richardson (2001), as
obras "The origins of order" (Kauffman) e "The origin of
species" (Darwin) não estão em competição.
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